segunda-feira, 24 de maio de 2010

Seu Correto

Por Adriano Irgang*

Eu conheci o Seu Correto em 1998, na pequena e pacata cidadezinha de Recanto Feliz. Nós morávamos na mesma rua. Minha casa ficava bem do lado da dele.

Seu Correto era aposentado da Prefeitura de Recanto Feliz.

A Prefeitura foi o lugar onde trabalhou durante 40 longos anos, como Auxiliar de Relações Humanas no departamento de Socialização Populacional.

Seu Correto era bem velho. Entretanto, ele não revelava sua idade. Algumas pessoas diziam que ele tinha uns 100 anos, outras diziam que tinham mais, outras menos. Era difícil precisar a idade do Seu Correto. Eu estimava em uns 80 anos. Ele não tocava muito no assunto. Quando alguém perguntava para ele quantos anos tinha, ele dizia ter 15 anos. A velhice era coisa da cabeça, não do corpo. A gente envelhece por dentro, dizia o Seu Correto.

Seu Correto ficava a maior parte do tempo em sua casa. Ele precisava ter o que fazer. Então passava o tempo varrendo a calçada em frente a sua casa, deixando ela bem limpinha. Mas bem limpa mesmo. Aquela calçada era o lugar mais limpo de Recanto Feliz. Talvez o lugar mais limpo do mundo.

Seus outros passatempos (hobbies) eram esses: sentar-se a sombra de um frondoso e maravilhoso cinamomo e assistir a programação local da TV aberta de Recanto Feliz. Ele vivia com a Dona Formosa, sua esposa. Seu Correto também tinha o Duke, um cachorro vira-lata muito bagunceiro.

De manhã, Seu Correto acordava bem cedo e varria aquela sua calçada. Se não era ele que varria, Dona Formosa fazia o serviço. Quando eu ia para escola, a calçada estava varridinha. Era um espelho. Muitas pessoas passavam por ali, só para se conferir no visual. Quem se esquecia de se pentear em casa, aproveitava a calçada para isso. Não é mentira.

Você podia mesmo se enxergar na reluzente calçada do Seu Correto.

Uma vez nos fomos jogar bola na calçada limpinha e recém varrida do Seu Correto. Ele estava em casa, assistindo TV. Seu Correto estava sempre em casa, e esse era um problema. Quando nos viu jogando, saiu porta afora, correndo como realmente tivesse os 15 anos que dizia ter, e nos tocou embora, soltando fogo pelas ventas. Ninguém jogava bola na calçada dele. Essa uma das regras do Seu Correto. Amigos-amigos, calçadas a parte. A calçada serviria provavelmente no futuro como ponto turístico, de visitação mundial, como eram as pirâmides do Egito. “ESSA FOI A CALÇADA DO SEU CORRETO”, escrito em uma placa de sinalização. “Você está chegando a Calçada do Seu Correto”. “Calçada do Seu Correto a 100m”, etc.

Dona Formosa ia para a feira, as sextas-feiras, bem cedinho, para conseguir as verduras fresquinhas. E na feira ela encontrava as amigas, do carteado, da missa e do chá da tarde. Esse era o momento de atualizar os assuntos pendentes, tomar conhecimento de novos assuntos e lembrar e relembrar os assuntos esquecidos.

Se o tomate estava feio ela brigava com o vendedor. Ela fazia isso com todas as frutas e verduras. Se não tinha nenhum problema com a qualidade do produto, Dona formosa reclamava do preço. Mas como o preço do tomate subiu! Não dá mais pra comprar nada com a que a gente ganha – reclamava Dona Formosa. Se não era uma coisa, era outra. O vendedor fazia de conta que escutava a Dona Formosa. Com o passar dos anos, ele foi se acostumado... acostumando... e aquilo se incorporou totalmente na sua vida. Tudo se ajeita. Não dá para se apavorar. O vendedor dava um exemplo de perseverança a ser seguido. Depois de Dona Formosa, nada mais abalava o vendedor.

Mesmo assim e com tudo isso, preço alto ou baixo, tomate bonito ou feio, Dona Formosa sempre ia pra feira, faça chuva ou faça sol, chovesse canivete ou o mundo tivesse acabando. A Feira era uma religião, como o carteado, a missa e o chá da tarde.

O filho do Seu Correto era Sargento do Exército e se chamava Quartelino. O Quartelino em todas as datas comemorativas do ano ( dia das mães, dos pais, Natal, Páscoa, etc.) e feriadões vinha com a sua esposa, a Paty e a filha, Fofinha, para visitar Seu Correto e a Dona Formosa. O Quartelino tinham um carro, do ano, novinho. Todos os anos o Quartelino trocava de carro. Sempre um mais novo e moderno. O Quartelino ganhava muito bem e a Paty nem precisava trabalhar por causa disso.

Esses dias eram dias bastante agitados na casa do Seu Correto. Dona formosa andava com a netinha Fofinha, de 6 anos, para cima e para baixo nos braços. Seu Correto dizia que ela ia se descadeirar por causa disso e também era para ela não mimar tanto a criança. Ele dizia que criança tinha que ser repreendida, não ouvida. No tempo dele, as coisas eram bem diferentes. Para qualquer coisa feita de errado, era uma surra daquelas, com vara de marmelo ou um tabefe no meio do ouvido, ou as duas coisas, vara de marmelo. E quando não fazia nada errado, Seu Correto também apanhava, para se manter na linha e porque desde cedo tinha que aprender que a vida não era fácil. Depois de velho, a gente agradece pelas pancadas que levou, afirmava ele, com uma sabedoria inquestionável.

Quando eu voltava da escola, perto do meio dia, ele estava sentado embaixo da sombra do cinamomo, que ele mesmo tinha plantando, há uns 40 anos atrás. O cinamomo tinha todos os cuidados. Aquela árvore era o segundo filho do Seu Correto. Ninguém chegava perto do cinamomo, nem mesmo Dona Formosa. Mas quando as folhas caiam era uma sujeira só.

As folhas do cinamomo serviam para ele ter o que fazer. Talvez por isso que ele gostava tanto da árvore. Sujava bastante a calçada e dava um trabalhão para ele e a Dona Formosa varrer as folhas. Ele ficava sentado em baixo do cinamomo, olhando a calçada ficar bem suja, pra outro dia de manhã, varrer tudo e deixar limpo para o cinamomo sujar novamente. Sempre tinha uma folha para ele varrer, faça chuva ou faça sol.

Quando ele estava de bom humor, cumprimentava todo mundo. Quando o Seu Correto estava de mau humor, não adiantava dar bom dia nem boa tarde pra ele. Seu Correto fazia de conta que não ouvia.

E o Duke, o cachorro do Seu Correto, era uma figura. O Duke estava sempre preso na coleira e era solto só lá de vez em quando, para o desespero de quem passava pela rua. O Duke ficava eufórico quando era solto e atacava todo mundo, sem distinção de classe, credo, cor, razão social. Pra um cachorro depois de meses preso na coleira, ser solto deve ser a melhor coisa do mundo. Acho que deve ser como você ganhar na loteria, casar a miss universo, viajar pela galáxia numa nave alienígena. Ou seja, era mesmo uma realização.

E aí o seu Correto e a Dona Formosa saiam atrás do Duke fujão para tentar pegar ele. Eu e toda a rua também tentávamos pegar o Duke, mas ele saia em disparada e só aparecia um tempo depois, para alívio do Seu Correto e Dona Formosa, e de todo mundo que conhecia o Duke.

Apesar de tudo o que o Duke aprontava, todo mundo, lá no fundo, gostava muito do arteiro. Eu sempre achei que o Duke tinha que ser criado solto, dentro do pátio, mas a casa do Seu Correto tinha uma cerca baixinha. Tinha vezes que o Duke latia sem parar, durante horas, geralmente de madrugada e ai ninguém dormia. O Duke descansava de dia e a noite ele trabalhava, ao seu modo, como muitas pessoas fazem por aí. O seu Correto não pedia para o Duke ficar quieto. Aliás, Seu Correto nem ouvia o Duke latir, por que ele tinha um sono de pedra, de rocha. Dormia cedo, com as galinhas e acordava cedo, com o galo.

Os veterinários dizem que cachorro tem que comer ração apropriada, mas seu Correto dava comida de gente pro Duke, que incluía ossos, arroz, feijão e muito molho. O Duke preferia mais a comida do seu Genésio do que ração de cachorro.

Quando eram umas 6 horas da tarde, no verão, por causa do calor, Seu Correto e a Dona Formosa sentavam na área da frente da casa e assistiam a TV, que ficava perto da porta, mas dentro da sala. Faziam isso porque estava muito calor e ninguém aguenta ficar dentro de casa com esse calor. Assistiam a todas as novelas e noticiários, para ficarem bem informados sobre o tempo, tragédias e desgraças de toda a natureza. Depois iam dormir cedo para acordar cedo, como as pessoas corretas e direitas fazem.

Seu Correto não tinha telefone celular, tv com tela plana, computador, vídeo game, carro, moto, câmara digital, som com mp3, ipod, carro do ano. Ele não precisava de tecnologias pra viver. Bastava a tv.

Porque Seu Correto ficava sentado uma boa parte do seu tempo na sombra do cinamomo vendo o tempo passar dava uma impressão de falta do que fazer, preguiça, desinteresse e algumas pessoas chegavam a dizer que ele era mesmo um desocupado, folgado, boa vida, etc. Para essas pessoas ele bradava: ninguém tem nada que ver com a minha vida!

O Seu Correto também achava que os políticos eram ladrões e se as coisas continuassem desse jeito, ninguém sabia como ia acabar. Tudo estava errado. Tudo. Tudo estava caro. Tudo. A juventude era alienada. O que ia ser? Não dava para confiar em mais ninguém. Nem na sombra. O futuro da nação estava na mão dos bocós molengas que eram a nossa juventude. Se o Seu Correto fosse presidente, iria melhorar a educação, acabar com o analfabetismo, os buracos nas estradas, a fome. Iria fazer a reforma agrária e todo mundo iria ter onde morar. A felicidade iria ser geral.

O mundo inteiro estava errado e o seu Correto estava certo. Alias, para o seu Correto todo mundo estava maluco, tam-tam da cuca, doido, etc. “Onde já se viu isso”? “Onde já se viu aquilo”? – Eram as perguntas mais frequentes do Seu Correto. Ele era a pessoa mais normal no mundo. A única. Não havia ninguém mais normal que o Seu Correto. Seu Correto não precisava trabalhar, estava aposentado e as pessoas que iam trabalhar enquanto seu correto varria a calçada ou sentava na sombra de seu cinamomo, ficavam meio injuriadas por causa disso.

Na realidade, o que importa mesmo e você ter aquele dinheirinho pra poder viver. Aí, é só levar a vida. Palavras estas do seu Correto.

Seu Correto era como o próprio sobrenome: correto. Melhor ainda era o nome: Certo. Seu Certo Correto.

Quando estudei Psicologia das Máquinas na universidade da capital depois voltei a Recanto Feliz e me inscrevi no concurso para Assessor de Pavimento na Prefeitura. Passei e fui trabalhar com mandas-chuvas da cidade. Não era a minha área, Psicologia das máquinas.

Pra que estudar 4 anos de faculdade e não exercer a profissão? - Me perguntou o Seu Correto. Mas não era essa questão. Eu precisava de emprego, ganhar a vida, como todo mundo. Era agarrar a primeira oportunidade de trabalho.

Desse modo a faculdade era uma perda de tempo, segundo o Seu Correto. Se você se esforça tanto tempo por algo, e aquilo não lhe traz retorno, é melhor ficar em casa sentado, em baixo da sombra de uma árvore. Mas não debaixo do cinamomo do seu correto. A sombra do cinamomo era do Seu Correto. Só e apenas do Seu Correto. Quem quisesse sombra, que tivesse sua árvore ou plantasse uma e esperasse ela crescer e dar uma boa sombra para desfrutar dela.

Mas o Seu Correto tinha seguidores. Muitas pessoas pensavam como o Seu Correto e só faziam o que o Seu Correto fazia. Se ele acordava às 5 horas da manhã, com o galo ou a galinha, todo mundo acordava nesse horário também. Se o Seu Correto ia para o mercado, todo mundo ia também, porque quando Seu Correto estava no mercado, toda cidade também estava. Se o Seu Correto assistia TV, novela, jornal, futebol, todo mundo assistia também. Se havia engarrafamento, enchente, temporal, destelhamento, certamente Seu Correto estava lá. Onde havia muita gente, havia o Seu Correto.

Se o Seu Correto tinha gripe, todo mundo tinha, só pra acompanhar o Seu Correto na doença. Se o Seu Correto varria a calçada, todo mundo varria também.

Na alegria e na tristeza, Seu Correto tinha seus seguidores.

Quem não estava com o Seu Correto, era chamado do contra, antipático, anti-social, esquisito, estranho e outros nomes mais cabeludos. Por isso, para não ter problemas, era sempre bom concordar com o Seu Correto.

*Adriano Irgang é contista, poeta e desenhista. Outros textos e desenhos de sua autoria estão no seguinte endereço:

http://www.replicantescotidianos.blogspot.com


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